quarta-feira, 27 de março de 2024

Creia

Segue essa vida, some na estrada, pega outra via, cruza avenidas. Vá, não espere mais nada. 

Encontre teus becos, repare em teus erros, ouça teus ecos, afaste teus medos e creia: há ruas que são mesmo vazias, onde vivem às escuras. 

Diante disso não corra, não fuja, não fique assustado. 


Tampouco parado. 

Pegue um rumo mais bonito, firma os pés no chão batido, plante boas sementes, colha dos teus frutos. Do lado de dentro é infinito, vê?


Então, acenda uma vela, reza um Pai Nosso e três Ave Maria para que Deus te ilumine e a nós não desampare. 


(fora da realidade é tudo mistério)


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Lírico

Traz de novo o gosto dos versos comuns, o manto doce das poesias, as rimas fáceis que rascunhas sobre esse corpo onde jaz teus verbos irregulares. 

Canta o que te faz contente, velhas cantigas de um trovador, mostra que és artista nobre, muito embora pobre, perdida no lirismo de um poeta-músico, este sim um sonhador.


Dança a música que toca agora, troca a tua pele, despe as tuas roupas, veste tua alegria enquanto rodopias nua neste salão vazio e cospe de uma vez por todas tua solidão. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

A sombrinha


Não sou fotógrafo, sou jornalista. E, como quase todo jornalista, sou observador. Carrego em mim palavras. Já meus olhos, muitas vezes cobrem-se de lentes coloridas e noutras tantas desbotadas. Sigo ajustando meus parágrafos enquanto foco em cenas comuns do dia-a-dia. Coisas sutis chamam a minha atenção: um olhar emocionado, um gesto atravessado, uma frase dita ao acaso, um abraço fora de hora, um céu de noites limpas e aquela senhora carregando flores e desaparecendo na esquina. Encantado, então, observo, absorvo, internalizo, registro e, quando posso, fotografo. 

Também não sou ciclista, mas pedalo. E volta e meia, enquanto pedalo aqui pelas bandas do planalto, esqueço que já passei dos 50 e me vejo menino de novo. Feito criança, enxergo tudo como se fosse novidade, como se eu estivesse descobrindo o mundo ali, sobre duas rodas, naquele instante. O que se apresenta diante de mim muitas vezes me espanta, me afeta, me alegra, me inspira e, quando não faço fotografias, guardo tudo no álbum que trago aqui dentro, que é pra eu nunca esquecer e, quem sabe, um dia escrever.

Dia desses, enquanto pedalava, resolvi parar um pouco para me esticar. Era início de tarde de um domingo, eu já havia dado umas duas voltas no parque, fazia calor e a luz do verão aqui no Cerrado clareando até o que a gente pensa que não dá mais para clarear. Fiquei um tempo ali, sozinho, parafraseando Gil, deitado na grama do parque sob o sol que ardia no alto do céu de Brasília. Lá longe, um casal apaixonado, braços dados, vem andando devagar. Ele com uma sombrinha vermelha a protegê-la do sol quente. Ela se derretendo toda para ele. Atrás deles, o lago cintilava, refletindo nuvens apressadas. Cena linda de se ver. 

Ao meu lado, as árvores sacodiam todos os galhos, como se aplaudissem "O Grande Produtor", agradecidas por espetáculo tão grandioso. Era, de fato, como se o amor, naquele breve momento, fizesse tudo ao meu redor sorrir. Eu também sorria. Por dentro e por fora eu também sorria. Na beira do lago, um senhor molhava os pés e levantava os braços como que em oração pelos dois enamorados - eu imaginava -, feito coisa de cinema, tal qual versos de um poema que um dia eu escrevi. 

Nunca esqueci.