terça-feira, 1 de setembro de 2020

É preciso sonhar

Há meses ele não sonhava. Talvez porque de olhos abertos o mundo já se apresentava por demais surreal, convenhamos. O que outrora soprava feito brisa, hoje irrompe em vendaval, essa é que é a verdade. Ele mostrava-se surpreso, pois ninguém esperava que fosse acontecer tudo aquilo em tão breve espaço de tempo, toda essa mudança repentina, antigos elos se rompendo e aquele ego frágil ali, ferido, perdendo o controle de tudo e as máscaras caindo ao seu redor. As imagens vinham como náuseas naquela sala onde ele sufocava entre os livros espalhados pelo chão de tábua corrida, deitado num sofá de couro velho e ressecado, desconfortável como a vida de fato é. Ele sempre esteve ali sozinho e isso era o que mais lhe machucava e destruía tudo por dentro. Lá fora, só o silêncio constrangedor dos que não enxergam nada além do próprio nariz. 

Não faz tanto tempo assim, talvez dois ou três anos, era noite e suas mãos seguraram e apoiaram outras mãos, um sentimento forte, arrebatador, olhares cúmplices, luxúria, pecados da carne que ele insistia em chamar de amor. Fez de tudo para que aquele sentimento não se esvaísse, não fosse apenas mais um, não escorresse pelo ralo e fosse embora até nunca mais. Ao contrário, cultivava cada pequeno gesto, cada palavra bonita, cada verso, rima, canção. Algumas coisas, então, começaram a fazer sentido: o que ele vivera até ali, os laços cada vez mais estreitos, portas entreabertas, histórias mal contadas, luzes e sombras entre as frestas, tantos segredos, tanto prazer e tanta dor. O resto era música em seus ouvidos e o outro sempre a lhe dizer que não.

Não era a hora, era muito cedo, ele não queria e não adiantava insistir. A vida já havia lhe mostrado um outro lado que talvez fosse melhor esquecer, deixar no passado, não tinha o porquê reviver. Bom seria se tudo pudesse ser apagado, tal e qual aquele filme de uma mente sem lembranças, deletar todos os arquivos, passar uma borracha e não deixar mais ninguém se aproximar, só relações fortuitas mesmo, sem envolvimento, sem carinho, rituais mecânicos, desprovidos de qualquer sentimento, o falo duro, um gozo e nada mais. E o outro preso na armadilha, sem conseguir se desvencilhar, fugir, correr, tentando sobreviver, respirar um pouco, encontrar uma saída. 

Eram dias de muita angústia aqueles. Do céu haviam sumido as estrelas e em nossos pés o barro seco a levantar poeira. Calor. O suor escorrendo enquanto os barcos à deriva no meu peito oceano, coração pulsando o mar e meu eu submerso, inquieto, curioso, com tudo aquilo ancorado dentro de mim. Porque amar é verbo intransitivo, eu sei. Mas nem todo mundo sabe. 

(eu preciso voltar a sonhar)