domingo, 14 de novembro de 2021

Neblina

Gosto quando tudo se revela mais bonito entre vento nuvens dissipando nesse céu borrado de diferentes tons azuis. 

Eis, então, que surge o verso em pretérito imperfeito desenhando letras garrafais em algum muro no caminho, revelando outras rimas sempre bem guardadas nesse peito em descompasso, palavras repetidas tantas vezes sem sentido e sem coragem, amores em desalinho. 

O resto é o eco, o vazio. 

E a sombra da solidão que não existe mais. 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

No way out

Andou esfriando esses dias. 

E a pálida luz que invadia a sala daquele apartamento no último andar do bairro mais tranquilo da cidade inquietava seu coração. Assim como a saudade de tudo que ficara para trás, o frio nunca lhe fizera bem. Apertava-lhe o peito, retraía os órgãos, doía de tremer seus ossos. Era quando sentia-se só, mesmo que com todos os que, de uma maneira ou de outra, sempre pensavam estar por perto. 

Naquelas manhãs era só o vazio mesmo, o vácuo, a insegurança da palavra proibida rabiscada na parede ocre, que sustentava a estante improvisada e coberta de livros. Tantas histórias, memórias, fotografias esquecidas em álbuns empoeirados de uma vida que não existia mais. Estava quase tudo ali. Bem na sua frente. Bastava abrir os olhos úmidos. 

Mas a luz pálida daquelas manhãs prejudicava a visão e o vento que corria fazia lembrar daqueles que carregam uma enorme frieza na alma, pesada como um muro de pedras, barreira milimetricamente erguida. Autossuficientes e indiferentes, eles dizem. Ai de quem cruza com essas almas. No way out.  

Não faz muito tempo, antes do fim da última primavera, talvez, quis ouvir palavras bonitas novamente. Pediu que lhe sussurrassem pequenos versos de arrepiar do dedo do pé ao pescoço, que lhe transformassem tudo ao redor em poesia nua, como sempre fizera em suas rimas despidas de pudor. Vida é poema, alguém lhe disse um dia. Nunca mais esqueceu disso e, desde então, implora para que o novo lhe toque a alma nesses tempos tão estranhos. 

Os ipês chegaram mais cedo este ano. Tomara seja um bom sinal, tomara. 


domingo, 23 de maio de 2021

Sem dor nem fúria

Ouvir The Köln Concert, do avassalador Keith Jarret, ao final de mais um domingo, em que mais uma vez tivemos provas de que estamos vivendo num mundo assustadoramente doente, me soa como uma espécie de alento, me faz sentir menos culpado enquanto pertencente a essa raça que se autodenomina humana. Não sei como vocês lidam com a realidade ou qual o nível de entorpecimento de cada um, mas eu, por exemplo, me vejo inserido numa sociedade despedaçada. Seja ela despedaçada porque de fato ruiu - o que foi projetado como sociedade ou a coisa em si -, ou despedaçada por estar aos pedaços, perdida, isolada, feito peças de um quebra-cabeças que precisa ser montado. 

E não é essa sociedade despedaçada o que me destrói por dentro, muito embora me apavore. Desde muito cedo que eu gosto de ter a consciência do caos, do som ao meu redor. Eu procuro prestar atenção, ficar atento. É como se naquele momento algo de muita importância e que eu nem sei exatamente o que é se organizasse dentro de mim. O que me destrói por dentro é a inércia nossa de cada dia. Reparem que eu me incluo nessa. Talvez muitos de vocês também se sintam assim, não sei. 

Aqui em Brasília é um pouco mais complicado estruturar qualquer tipo de análise mais ampla da sociedade. Pelo menos para mim, como mero observador que sou e autor de análises rasas, é bastante complicado. Aprendi a amar essa cidade. De verdade. Mas Brasília é uma cidade de distâncias. Se você é daqueles que não gosta de muita aproximação com ninguém, aqui é o lugar ideal. Não é o meu caso. Eu gosto de gente. E gosto de Brasília. Parece contraditório e de fato é. 

Mas é que aqui, depois de um breve estranhamento, passei a fazer outro tipo de análise, posicionei meu observador num outro lugar e foi como se meu ângulo de visão se estreitasse e eu passasse a enxergar apenas poucas pessoas. Para algumas dessas poucas pessoas, inclusive, foi como se eu tivesse olhado com lupa. E então, o que de cara se mostrava distante, logo se aproximava e se revelava com muito mais riqueza de detalhes. E o curioso é que, na mesma proporção que havia essa aproximação com os de fora, havia uma enorme aproximação com aqueles que eu carrego dentro de mim, que agora também deixavam que eu os observasse e com a mesma riqueza de detalhes. 

Talvez essa aproximação com todos esses que habitam ao redor e dentro de mim tenha ajudado para que eu não me despedaçasse nesses últimos tempos tão estranhos, pandemia, isolamento social, perdas e saudades. Mesmo eu tendo a consciência de que eu pertenço a essa sociedade despedaçada, que eu sou peça desse quebra-cabeças, que carrego minhas culpas e que sou o único responsável por minhas tragédias mais íntimas. 

Confesso que não sei o porquê de eu escrever essas poucas linhas tortas nesse final de domingo se o que eu queria mesmo era ter o poder de livrar todo mundo desse Mal que eu infelizmente vejo tão próximo de todos nós, sem exceção, e não tenho. Escrevendo, infelizmente, ainda não consigo nos livrar dos que estão cegos e inseridos numa espiral negativa que pode arrastar todos nós para uma tragédia coletiva. Tragédia essa que já está batendo em nossas portas e andando de moto bem debaixo do nosso nariz.

(escrever sempre foi meu desabafo comigo mesmo quando tudo parece fora do lugar) 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Metaforicamente

Ah, quantas vezes já quis parar o mundo nem que fosse por um segundo e me perder nesse poço sem fundo dentro de mim? Aqui fora, meu corpo é verso rabiscado na parede branca e aquilo que cai deitado ali, meio inclinado, é minha sombra, meu reverso, o avesso, a não poesia. 

Percebe como minha voz às vezes é mansa?

Lembra canto de ave rara, canto breve em sol menor, feito a brisa suave que sopra rima em seus ouvidos. Ouve só. Voz de menino passarinho avoando bem baixinho como fazem as gaivotas quando encostam suas asas delicadamente na superfície do mar. Chego a ficar sem ar. 

Ondas rebentando na areia e eu ali, exposto. Não me importo. 

Naquele momento é como seu eu conseguisse de fato parar o mundo. Respiro fundo. Inspiro. Estamos por aqui sozinhos mesmo, eu sei. Isso também já não me importa. Expiro. A verdade é que não falta muito tempo, já é outono novamente, o céu borrado de azul deixa meus dias mais bonitos e, juro, tenho ouvido Nick Cave. 

Não sei se te falei, mas ontem mesmo me disseram que a vida é uma grande metáfora. Acreditei. 

E metaforicamente mergulhei em mim. 

(você estava lá?) 

domingo, 14 de fevereiro de 2021

E daí?

Dia desses eu o vi atravessando a rua aqui perto de casa. Da última vez que nos encontramos ele me revelou ter fracassado no amor. Ora bolas, como se isso fosse algo raro de acontecer desde que o mundo é mundo. Eu também havia fracassado tantas vezes, confessei, e todas as vezes foram como se um véu se descortinasse bem diante dos meus olhos turvos, tantos gestos tristes, lentos, juntando pedaços de mim. 

Naqueles dias eu era metade neblina, metade temporal. 

Era como se em minhas veias corressem versos tímidos, verbos atropelados, palavras na contramão, tudo ao mesmo tempo agora. E então, eu aqui fora, me derramava em poesias de fuga, inventava uma nova rota, criava outras histórias e me escondia entre as rimas que eu mesmo trazia desde que vim parar aqui. 

É estranho, eu sei. Confuso até. 

Mas está tudo dentro de mim, assim como está tudo dentro dele também, nós dois sabemos muito bem disso. Essas coisas sufocam a gente, quase não dá pra contar. Melhor seria uma existência sem afetos, sem proximidade, sem intimidade, toque, pele, sexo, nada disso. Um pra lá, outro pra cá. Isso tudo dá muito trabalho, envolve outras pessoas, cada um é cada um, reage de um jeito, pensa diferente, enxerga assim ou assado, um quer enquanto o outro não quer. É sempre assim. Difícil. 

Já é madrugada. 

Chove sem parar nessa cidade faz mais de duas horas. 

Não teve carnaval esse ano, e daí? 

Eu sinto falta mesmo é do meu coração batendo em descompasso.  

(e de um abraço)