quinta-feira, 30 de julho de 2015

Âncora

Há um imenso oceano lá fora
e a saudade ancorando dentro de mim.

Ondas que batem nas margens,
as minhas,
meus pés sujos de areia
se desfazendo em grãos
por onde pisei.

Nas estradas de onde eu vim,
meu céu de estrelas,
minhas flores,
de todas as cores.
O mais bonito jardim.

Marco encontro com minhas esquinas
meus desvios, curtos-circuitos,
passagens subterrâneas,
e me perco nas imagens presas na retina.
Cortina da fumaça que enche meus pulmões.

Ora sou o copo d'água que me afoga
antes de matar minha sede.

Ora sou a correnteza que me abraça
sem licença e me carrega.

Ora sou o vento que sopra minhas velas ao mar.

Oceano, saudade e âncora.

Tudo isso dentro de mim.











 
 












quarta-feira, 22 de julho de 2015

Zíper


21h30, ainda estou no jornal, quando toca o celular. No identificador de chamadas aparece escrito MÃE em letras garrafais. Eu atendo, lógico.
- Alô...
- Marcio, sou eu, você já está vindo pra casa?
- Já, mãe, estou desligando tudo aqui. O que houve? 
- É que eu fui no Imperator com a Soninha...
- E?
- Cheguei agora...
- Mas está tudo bem, mãe?
- Está... só estou entalada.
- O que foi que você comeu dessa vez, mãe? - pergunto já no nível do desespero.
- Nada demais.
- E está entalada com o quê?
- Com o vestido...
- Oi?
- O zíper, não estou conseguindo abrir o zíper.
- ...
- Não demora a chegar não, tá?
- Tô indo, mãe... tô indo!

Linha 247

20h30, vc já está podre de cansaço, condução cheia, engarrafamento master, ônibus incendiado na via de acesso ao seu bairro, sirenes atordoando lá fora, carros da PM tentando ultrapassar, inflação, Petrobras dissolvendo, máfia dos ônibus com dinheiro na Suíça, votação do Estatuto da Família, grana curta, fome, dor de cabeça, tiroteio no São João, até que começa um bate-boca na linha 247 entre uma loira de meia idade com shortinho e barriga vergonhosa pulando para fora e um senhor careca, camisa puída, tudo gente simples:

- Quer conforto? Vai de táxi, grita a loira.
- Abre essa janela! Está calor! , responde o senhor.
- Não está vendo que a janela está emperrada, p*rr@? , exclamou a princesinha.
- Mal educada!, gritaram lá atrás.
- Tua mãe!, bateu de pronto a desbocada.
- Cadê o ar condicionado desse ônibus?, disse um gaiato.
- Pergunta pro prefeito, respondeu outro.
Enquanto isso, passa um comboio do Bope armado até os dentes ao lado do ônibus. Todo mundo se cala. Tremendo silêncio até que o senhor careca se levanta, mete a mão no vidro e abre a janela de uma tacada só.
- Deixa essa merda aberta!
(E seguimos viagem)

Oi?

JN no ar, Lava-Jato encabeçando o noticiário, dona Lígia deitada no sofá, ar condicionado ligado, olhar intrigado, até que vira pra mim e diz:

- Como é que pode, né?
- Pois é, mãe, falta de vergonha na cara.
- Não é possível. Eles já eram ricos.
- Mas eles sempre querem mais. É muita ambição.
- Eu gostava deles. Cantavam desde criança.
- Quem, mãe? De quem você está falando?
- Sandy e Júnior. Não ouviu o repórter falar o nome deles? Que sujeira...
- Pelamordedeus, mãe! É Sandes Junior, deputado...
- Nem sabia que eles tinham entrado pra política, uai. Precisava disso?
- ...
(Não, mãe, não precisava!)