quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O sonho da tatuagem na coxa

Não fique chateado se eu lhe disser que sonhei com você e seu irmão gêmeo na noite passada. Fazia frio em meu quarto, mas as ruas as quais atravessamos estavam ensolaradas e de longe pude perceber que eram vocês. Idênticos. O mesmo corte de cabelo, as mesmas pernas finas, a mesma barba rala por fazer a sombrear-lhes as faces, os olhos arregalados e expressivos até que me fitaram e correram para dentro de um bonde sobre trilhos que desciam ladeiras numa velocidade além da permitida e desapareceram outra  vez.

Era uma manhã azul, com algumas nuvens baixas, abafadas e a assombrar-me claustrofobicamente. Muito barulho a perturbar-me, a desconcentrar-me e eu ali tentando fitar tanto um quanto o outro, sem saber ao certo quem era quem, mas feliz por vê-lo fosse quem você fosse porque eu sabia que só em sonho mesmo para poder encontrá-lo outra vez. Até agora não sei bem ao certo onde eu estava e o que eu fazia. Das minhas mãos pingava um suor amargo e minha pele branca ruborizava ao menor pensamento. Insano. Eu era louco. Sempre fui louco. Mamãe dizia que eu era um descompensado e que tinha medo das minhas reações, dos meus gritos, da minha voz grossa que até hoje ecoa em verso e prosa e histeria. Já uma outra tia me disse em seu leito de morte, na UTI coronariana de um hospital particular, em meio a tubos e aparelhos que ainda a mantinham viva, que eu era especial. Especial por quê? Eu era como todo mundo deveria ser, tinha um certo cuidado no trato com o outro, uma preocupação tola em tirar as coisas da ordem natural, mas de especial eu não tinha nada.

Esta minha tia morreu há mais de vinte anos e volta e meia vem me visitar em meus sonhos e vive a me encher de dúvidas sobre o que eu sou, o que eu fui, quem eu poderia ser e quem eu jamais seria. Estas dúvidas sempre me abateram, mas nunca me importei de fato. Certo mesmo é que eu, ali sozinho no quarto frio, nem percebia que estava dormindo e que ao abrir os olhos estaria tudo bem, muito embora naquele sonho eu tivesse uma certeza: eu estava doente e tinha noção do pouco que me restava. Rostos desconhecidos passavam ao meu lado e me diziam que eu ia morrer, que eu estava magro demais, que meus cabelos estavam caindo, que minha barba estava por demasiado branca e então, naquele devaneio onde eu por acaso vira ele e seu irmão gêmeo, no fundo sabia por que sofria e por que me deixara abater.

O medo da morte fez com que eu telefonasse para uma outra tia, esta sim viva, que em instantes foi ao meu encontro. Nua. Completamente despida ela atravessara a rua movimentada sem que ninguém a percebesse e foi ter comigo, me socorrer, pois eu estava morrendo e antes de morrer sofria de um medo inexplicável. Como se ela pudesse me salvar, pôs-se a desfiar um rosário de conselhos inúteis, dicas estranhas e outras tantas palavras absurdas que eu já me esqueci. Receitou fórmulas prontas, dessas que mandamos manipular em farmácias que proliferam nas esquinas dos bairros mais afastados. Eu não queria remédio. Eu queria é sorver sem culpa e sem demora o veneno da redenção. Era essa a falta que meu corpo sentia. Queria em doses cavalares do mesmo jeito que eu tomara há alguns meses e que de tempos em tempos me corroía e contraía minhas artérias sem dó nem piedade, adormecendo-me os braços, amortecendo-me a queda, ecoando em minha mente a imagem daquele que eu não encontraria jamais.

Mas você veio em minha direção, invadiu meu sonho, atendendo a um pedido que eu fizera desde sempre, desde que você deixou de existir naquilo que consideramos real. Porque você também morreu, eu sei, e jaz a figura que passou a permear minhas vontades, meus desejos, acompanhando minha solidão por onde quer que eu fosse. E neste caminho eu não sei mais quem você é e nos atalhos vêm as dúvidas outra vez em relação a tudo o que eu um dia pensei em me tornar. Uma amiga vem de novo e me diz que não entende esses meus múltiplos. Nem eu, confesso. E aquela minha tia ali completamente pelada, com seus seios fartos a roçar na minha pele, sorriso franco, a tatuagem na coxa esquerda a me erotizar, me enrijecer e o medo de ejacular e ser pecado porque, ora bolas, é minha tia ali, por mais que ela se parecesse com a menina da repartição e mesmo que eu não a conhecesse muito bem, ela estava ali para me salvar e eu nunca deveria tentar desrespeitá-la. Nem em sonho.

Você então desceu do bonde ávido por pecados e veio em minha direção. Seu irmão a nos observar e o adiantado das horas apressavam seu caminhar lépido, cortante, e em instantes estava em cima de mim, com o queixo a se apoiar em meu peito, como sempre fazia, a me encarar de muito perto, a me deixar com a visão embaçada, o ar ofegante, os mesmos olhos arregalados e tristes. Suspirei e senti até mesmo o seu hálito forte enquanto de sua voz ainda não se ouvia nada, mas pude sentir o coração batendo acelerado feito os primeiros acordes de uma escala em execução. Havia música no sonho, uma sonoridade específica que eu não saberia distinguir sequer quais instrumentos faziam parte ou mesmo se as notas eram graves ou harmônicas. Era apenas sonho. Eu e você ali. Ao nosso lado, minha tia, ainda nua, agora ainda mais parecida com a menina da repartição, morena simpática da coxa grossa tatuada, a exibir o sexo sem pudores, sem vergonhas, sem peso, nada, nua. Ela a observar o que fazíamos e a cantar para que minha morte ainda demorasse a chegar porque queria me ver feliz na hora da partida e eu e você ainda nem havíamos nos beijado.

Eu tentei me lembrar da música que tocava no final, mas não consegui. Tentei lhe segurar, mas não me foi permitido. Continuei a  prestar atenção nas ancas da morena que ora fora minha tia e que você sequer se dera conta da presença. De longe, do outro lado da rua, seu irmão cuidava de uns cavalos. Já não havia mais bonde, nem barulho, nem nuvens cinzas a abafar o azul do céu e a encobrir o que se quer do dia. Não havia remédio. Não havia solução. Apenas a felicidade de ter lhe encontrado no que eu sabia se tratar de um sonho, algo que não existe, assim como eu ou você.

Porque todo o tempo em que estou acordado você está em mim e eu estou em você, mesmo que eu não lhe conheça e nem você a mim. E eu continuo com o gosto do beijo do desconhecido e com minha língua a roçar na tatuagem da coxa nua daquela que já não é ninguém a me encher de desejos estranhos enquanto tudo ao redor se desfaz.

É sonho.


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