quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Falta um mês

Tarde tensa na repartição, como de costume. O colega ao lado não consegue terminar o relatório, mas também não pede ajuda. A demanda da sucursal de Brasília é grande, o diretor-financeiro do grupo resolveu estender sua viagem ao exterior e esqueceu das pendências, o gerente da matriz parece ter surtado com tantos pedidos de última hora e até mesmo dona Lurdes, a moça da faxina, perdeu o bom humor habitual. Vai ver é a lua fora de curso, diria uma amiga, ligada nesse papo de astrologia e tal.

Eu consigo me manter relativamente equilibrado em meio àquele turbilhão de problemas. Minhas tarefas estão todas sob controle, os contratos que deveria assinar eu assinei, liguei para quem deveria ligar, fiz minhas notificações, conferi. Tudo certo. Cheguei até mesmo a me oferecer para ajudar ao colega que estava enrolado com tantos afazeres, mas recebi um 'não, obrigado' como resposta. Olhei para o relógio do meu monitor, que marcava cinco e trinta e três. Dali até que meu gerente resolvesse sentar comigo para analisar minha parte no processo, seriam horas intermináveis. Deu um certo desânimo. Foi quando levantei para dar uma mijada e garantir o bom funcionamento dos meus rins, tomar um café, fumar um cigarro no estacionamento e dar uma relaxada daquilo tudo. Do banheiro eu ouvia todo o falatório que vinha das salas ao lado e tive a impressão de ter escutado meu gerente gritar com o estagiário. Eu nunca gostei muito de estagiários, confesso, mas em compensação, nunca fui capaz de destratar nenhum deles. Na verdade isso tem a ver com o fato de eu não conseguir dividir tarefas. Além do mais, mesmo já tendo servido ao exército, não tenho voz de comando. Acabo resolvendo tudo sozinho. Meu terapeuta me sacaneia dizendo que eu tenho potencial para virar um eremita. Vai ver ele está certo.

Termino de me aliviar no mictório repleto de bolinhas de naftalina, lavo as mãos num fio tímido de água, me olho no espelho, cansado, ajeito o pouco que que me resta de cabelo e saio dali direto para a máquina de café. Quero um capuccino. Custa setenta e cinco centavos. Se fosse um expresso ou um longo eu não pagaria nada, mas o capuccino a firma não paga. Tiro do bolso uma moeda de um real, coloco na máquina, aperto o botão do danado do capuccino, a máquina começa a preparar meu pedido - que em segundos fica pronto - mas não me dá meu troco. Foda-se. Pego meu copo de plástico cheio daquela bebida quente e perfumada e desço as escadas para fumar meu Marlboro. Vício danado esse.

Lá embaixo, no estacionamento, um entra e sai confuso dos caminhões com as entregas que chegam de todo o país, o papo furado dos seguranças, o mau humor dos motoristas e um e outro colega que, como eu, não consegue abandonar o tabaco. Lauro é um deles. Fazia tempo que não esbarrava com ele. Das últimas vezes que nos encontramos eu não fui muito receptivo e fiquei com a impressão de tê-lo magoado. Lauro era um rapaz alto, magro feito um vara pau, ombros retraídos, pele excessivamente branca, óculos quadrados que lhe acentuavam ainda mais a aparência sensível, ingênua até. Dizia já ter sofrido muito por conta de uma timidez mórbida que o acompanhou durante toda a infância e boa parte da adolescência, mas agora estava curado. De origem humilde lá das bandas de Quintino, subúrbio da Central, onde sua família tinha um armazém. O pai herdara o negócio do avô, um português corpulento que jamais permitira que o neto ficasse atrás do balcão. Esse menino tem mais é que estudar, tirar um diploma, ser alguém na vida, o velho dizia. Lauro, que sempre gostou de ler e escrevia corretamente, optou pela advocacia e hoje, ao invés de vender as mercadorias que o avô vendia e que o pai seguiu vendendo, veste ternos e anda engravatado por aí, resolvendo pepinos e abacaxis dos outros. Assim que me viu veio em minha direção.

- Falta um mês, não é? - ele disse.

- Para o Natal? - eu perguntei.

- Não. Para o fim do mundo. Hoje é dia 21 de novembro e, conforme o calendário dos maias, dia 21 de dezembro acaba isso tudo.

- E você acredita nisso?

- Não. Até porque, para mim, o mundo já era faz tempo. Não posso acreditar no que estamos vivendo. Não foi isso o que sonhei pra mim e acho que nem ninguém sonhou algo tão absurdo - ele desembestou a falar, o que me fez duvidar se ele realmente chegou a sofrer daquela timidez mórbida que um dia me contou.

Lauro parecia calmo e discursava a respeito da nossa realidade sem demonstrar revolta. Era apenas uma constatação dos dias que vivíamos. Um reflexo de tudo que se passava ao nosso redor, talvez, mas que ele, com tamanha sensibilidade, devia captar com mais facilidade. Meu terapeuta volta e meia me diz que a grande maioria das pessoas apenas vive por instinto. Respira, come e caga sem pensar e sem enxergar muito mais do que se passa além de nossos limites. Ele me diz também que estas pessoas estão presas em suas vontades, vaidades incontroláveis, e não veem um palmo à frente do nariz. Talvez eu me enquadre nessa categoria, não sei.  Faz tempo já que eu apenas vivo um dia atrás do outro, sem me preocupar com o que acontece ao meu redor. Tenho um ego muito grande, sou egoísta por natureza, costumo dizer por aí que sou autossuficiente, que eu me basto e pronto. Não é verdade. No fundo, assim como Lauro, eu também sofria. Mas por defesa, sei lá, eu procurava disfarçar.

Lauro não disfarçava o que sentia. E cada vez mais fazia questão de demonstrar sua insatisfação e suas angústias fosse com quem fosse. Falava o que lhe vinha à cabeça. Muitas vezes parecia desequilibrado, muito embora tudo o que falasse fosse pertinente. Ultimamente estava cansado das guerras que entristecem e envergonham nossa raça. Dizia que não podia mais suportar os mandos e desmandos dos governantes, os aumentos absurdos, os impostos inexplicáveis, a corrupção que corria cada vez mais solta, a exploração do trabalhador, que vivíamos todos esmagados num contexto social aquém do que merecíamos, que a violência era tratada agora como um produto de marketing político, que não acreditava na humanidade, que não havia luz no fim do túnel, que a crise econômica era uma bola de neve, que nosso país vivia uma mentira e que a hipocrisia havia contaminado tudo e mais um monte de absurdos indiscutíveis.

- Eu também sou hipócrita - ele admitiu, enquanto eu dava o último trago no meu cigarro.

Permaneci calado, ouvindo tudo aquilo. Ele continuou afirmando que estávamos todos contaminados, cegos, tontos, caminhando sem rumo, feito máquinas sem controle, robotizados. Por um instante eu fui obrigado a pensar naquilo tudo e me dei conta que ele talvez estivesse certo e que se o mundo acabasse dali a um mês eu seria apenas mais um a virar poeira, assim como ele, mas só que ele tinha algumas contestações que o faziam diferente de mim e de todos os demais. Me deu uma sensação de vazio, de que até hoje eu não fizera nada, como se eu tivesse sucumbido e entrado naquela roda viva que me deixava inerte e inútil. O que eu poderia ter sido se perdeu e eu nem soube onde foi que isso se deu. Me subiu um frio na espinha. Apaguei o meu cigarro ali mesmo no chão do estacionamento, olhei para ele meio sem graça e admiti que tinha medo,  que eu também gostaria de viver num mundo diferente, mas que era daquele modo rude que a vida se apresentava para mim e para ele e que, sendo assim, era preciso aceitar o que o destino nos reservava. Disse essas coisas todas sem muita convicção e me despedi dele sem confessar que eu também era um hipócrita, um covarde, que deixei alguns amores escaparem nesta vida, deixei de agradecer a quem devia, que esqueci de alguns amigos e parei de escrever poesias para encarar um mundo que se mostrava a cada dia mais cruel.

Subi as escadas devagar. Já passava das seis. Lá em cima, o caos. E nem era o fim do mundo ainda.

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