quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A morta-viva

Lá estava ela mais uma vez na lanchonete da repartição. Fazia tempo que não a encontrava por lá. A correria do dia a dia tem uma enorme responsabilidade no distanciamento entre as pessoas, e as relações de amizade, se não bem cuidadas, acabam evaporando. Eu nem sou tão amigo dela assim. Mantenho uma relação cordial apenas. Até porque, nunca me senti verdadeiramente à vontade ali para fazer amigos. Nem ali nem em lugar algum. Mas sou um bom ouvinte e, como já dizia minha avó, tenho saco de filó. Portanto, volta e meia sou cooptado para ouvir uns desabafos, pieguices de gente dramática, que remói dor de cotovelo, que fala demais. Tenho um conhecido que diz que eu atraio gente louca. Desconfio que seja verdade.

- Eu morri para ele - ela me disse assim que eu sentei ao seu lado com meu copo de café nas mãos.

- Ele me ignora solenemente, como se eu tivesse morrido. Ou pior: como se eu nunca tivesse existido. Quando nos vimos pela última vez estava estampado em nossos olhos todo o amor que descobrimos sentir um pelo outro. Não foi por falta de amor que nos separamos, mas por circunstâncias da vida. Muito embora tais circunstâncias pudessem ser transpostas. Nada poderia impedir nossa felicidade, a não ser nós mesmos, com nossos medos que travam nossos corações e nos impedem de seguir adiante e experimentar o desconhecido. Hoje continuo com medo, muito mais até, e meu coração bate mais devagar, sigo meu caminho com o olhar distante, como se eu estivesse perdida, sem rumo, sei lá. Há quanto tempo nós não conversamos?

- Pra lá de mês - respondi mirando seus olhos tristes.

- De lá para cá já pensei tanta coisa, tantas bobagens já se passaram na minha cabeça. Voltei a sair com as minhas amigas, resolvi tentar me divertir, ver gente bonita, ouvir uma boa música, dançar. Até beijar na boca eu beijei. Mas não me esqueço dele. Acordo e durmo pensando nele, querendo saber se ele está bem, se já tem novos projetos, se conseguiu o diploma, se continua lindo, essas coisas tolas que a gente pensa quando está apaixonado. Você sabe, não é?

Continuei sem tirar os olhos dela, mas não lhe respondi.

- Ainda sinto muita saudade e me dá um aperto no peito toda vez que penso que nunca mais vou encontrá-lo, que ele vai fazer de tudo para não esbarrar comigo e se por acaso isso acontecer, está arriscado a ele fingir que não me conhece, virar o rosto, atravessar a rua, mudar de calçada. Como se eu fosse um ser asqueroso, uma mulher suja, contaminada, uma doença, detentora de todo mal. Quando isso não é verdade. Posso não ser pura, muito menos um anjo de candura, mas ainda guardo em meu peito um amor enorme, uma chama que trago acesa e que teima em me arder, em me queimar por dentro e que me revelou um sentimento lindo que eu também não conhecia. O que eu faço com isso, me diz?

- Não sei.

- Ninguém sabe. Já fui a pai de santo, astrólogo, igreja, terreiro, benzadeira, tudo. Já ouvi muitos conselhos, mas nenhum que me convencesse. Porque não adianta você chegar para mim e dizer "esquece". Não é assim que funciona. Se fosse assim, seria fácil demais. Talvez para ele tenha sido fácil. Talvez ele até tenha a fórmula para enterrar sentimentos tão nobres como o amor. Ou talvez ele nunca tenha me amado, o que é muito mais provável. Porque ele não sabia o que era amor, ele me disse uma vez. Disse ainda que nunca tinha ido para a cama com alguém que o tivesse deixado tão à vontade ou que lhe tivesse despertado tanto desejo. Não só pelo sexo em si, mas pelo carinho e por tudo o que envolvia a  nossa relação. Confesso que sinto falta do cheiro da pele dele, de ver aquele corpo esguio nu na minha frente, de me encostar nele, da língua em meu pescoço, das mãos nas minhas coxas e do encontro de nossas bocas.

Assim eu fico excitado, pensei.


Pensei também naquela mulher linda ali na minha frente, que tão pouco me conhece, a me contar tantos detalhes de uma relação amorosa que eu não tinha o por quê de saber. Nunca consegui entender como é que algumas pessoas conseguem se expor tanto, sem travas no que se refere à vida particular, principalmente a sentimental. Sempre fui adepto da máxima que diz que o que acontece entre quatro paredes, fica entre quatro paredes. Se eu gosto de apanhar, de bater, de xingar, de papai e mamãe, de oral, de anal, o escambau, o problema é meu e ninguém precisa saber. A não ser quem está comigo entre as quatro paredes, claro. Nem em mesa de bar, com o álcool transbordando nas ideias e amolecendo a língua, isso é coisa que se comente. E aquela mulher linda ali na minha frente, em plena lanchonete da repartição, a me contar seus particulares.

Quisera eu pudesse ajudá-la com alguma palavra de conforto ou de estímulo para ela sair daquela situação desconfortável em que se metera, mas pouco entendo das coisas do amor e talvez até me identifique com o tal sujeito que sumira da vida dela. Assim como ele, acho, eu nunca amei ninguém. Nunca soube o que é sentir saudade e jamais sofri por quem quer que fosse. Sofro por mim e as minhas dores já me bastam. Não poderia uma outra pessoa me fazer sofrer ainda mais. Eu não permitiria que alguém entrasse em minha vida para me fazer sofrer. Ninguém nunca iria me colocar no chão, me fazer de capacho, me usar, brincar comigo e depois desaparecer, me ignorar, não me responder, não querer me ver outra vez. Agir como se eu nunca tivesse existido, como se eu fosse alguém que pudesse ser descartado, enterrado vivo. Exatamente como ele havia feito com ela. Por isso eu não amo e nunca vou amar ninguém. Mas eu não disse nada disso a ela. Até porque, acho que ela não iria dar ouvidos.

- Preciso ir.

- Eu morri para ele - ela disse outra vez.

- Mas quantas vezes morremos?, retruquei, já levantando. Morremos de fome, de sede, de raiva, de nojo, de tesão, de vontade. E por isso continuamos vivos.

- Continuo viva, porém morta.

Bebi o último gole do meu café já frio, segurei nas mãos dela e me despedi sem dizer mais nada, apenas olhando aqueles olhos vacilantes. Voltei para a minha sala, para os meus projetos, para os meus prazos apertados. Mas dali até o final do expediente, me flagrei umas duas ou três vezes pensando naquela mulher e no quanto ela estava sofrendo. Agradeci a Deus por nunca ter me dado a oportunidade de encontrar um amor nesta vida. Agradeci por minha solidão, por minha vida sem grandes emoções, vazia até, e pelo silêncio que me acompanhava nas noites em que eu brigava com o sono na escuridão do meu quarto. Eu era feliz daquela maneira.

Pelo menos eu queria acreditar que era. 

Um comentário:

  1. A gratidão do último parágrafo é de uma hipocrisia sem fim. Concordo - o narrador é bem mais zumbi que a mocinha...

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