domingo, 4 de novembro de 2012

Aquele que se fez de mudo

Não venha você mais uma vez tentar me fazer falar. Nem mesmo se eu conseguisse soltar minhas mordaças eu falaria. Optei por permanecer calado até o fim dos meus dias já que os demais não iam mesmo me ouvir. Nem a mim, nem a você, nem a ninguém. Não que eles tenham sido acometidos por alguma otite ou meningite ou qualquer outra desgraça terminada com o sufixo ite, e tenham perdido a audição. De jeito nenhum.

Sob o ponto de vista clínico, são todos saudáveis, diria o plantonista da emergência de uma unidade de pronto atendimento qualquer. O que talvez o tal plantonista não soubesse, o que o doutorzinho recém-formado sequer desconfiasse, é que todos ali são surdos em potencial e, portanto, não lhe dariam ouvidos.

O som da sirene atormentando lá fora, as buzinas incessantes, os gritos das crianças no pilotis e as armas de fogo comendo soltas nas ruas da maior cidade do país são apenas ruídos, sujeira urbana, o caos anunciando que a vida é um eterno conflito enquanto um cartaz entra em quadro e eu leio que a paz que eu procuro está no silêncio que eu não faço. Então, não venha você me fazer falar porque eu já avisei com toda a antecedência devida que estou mudo. Você me parece que não escuta muito bem.

Lembra que da última vez eu lhe disse que uma infinidade deles, além de surdos, têm graves problemas de visão e não enxergam além do espelho, não veem um palmo a frente, não olham para fora, perdem o foco, a clareza e o resto que sobra é só escuridão? Vivem numa solidão tão extrema que chega a sufocar, porque por mais que saibam se expressar, só conseguem falar de si mesmos, não entendendo muito bem o que se passa ao seu redor. A humanidade é mesmo um sem-número de ilhas.

Você sabe que eles falam demais e que toda esta verborragia na sua maioria das vezes não quer dizer nada, é tudo eco, apenas mais um texto mal escrito, umas frases sem significado, uma lição comum, de gente ordinária, sem papas na língua, pensamento acelerado, uísque, poder, luxúria, dinheiro, pó. Dá um vazio encontrar com gente assim.

Acredito que se você viesse conversar comigo numa outra ocasião eu sequer lhe daria atenção. Seria incapaz de ouvir toda aquela ladainha interminável de sempre, da qual eu já estou cansado de saber que poucas coisas mudaram desde a última vez que você me interrompeu no refeitório, sentando ao meu lado sem pedir licença e derramando as mesmas histórias escabrosas sobre a mesa, atrapalhando meu ritual de almoço solitário e por si só silencioso.

Assim como meu falecido pai, nunca gostei de falatório na hora das refeições. Era uma hora sagrada, ele dizia. Além do mais, hoje em dia eu procuro evitar contato mais próximo com quem quer que seja, não revelo a ninguém os meus problemas, não deixo transparecer minhas angústias, conservo minha intimidade. Há anos tento me acostumar a conversar somente o indispensável - sem deixar de lado a polidez -, que é para não parecer mal educado. Mas confesso que cansei.

Eu ando mesmo distraído, desatento, com meus reflexos mais lentos a cada dia, como se o foco fosse se desfazendo em plano sequência ali na tela imaginária que volta e meia se forma à minha frente e tudo o que resta de mim é um borrão, um pensamento inerte, alheio, sem direção.

Eu procuro não pensar muito no que pode estar acontecendo ao meu redor ou no que está me deixando deste ou daquele modo. Por mais que eu revire meus arquivos, não encontro a razão para que tudo se dissipe deste jeito. Confesso agora que não tenho noção de quanto tempo já me sinto assim. Talvez por eu me achar tão autossuficiente, tão dono do meu nariz, tão bem sucedido profissionalmente, tão egocêntrico e, por isso mesmo, tão diferente de tudo e de todos, me fecho agora numa redoma e não me importo se dela eu nunca mais sair. Porque eu fui único enquanto os demais eram só coadjuvantes, figuração sem a menor importância nesta história.

Não se assuste. Mande o pudor às favas e não venha tentar me revelar seu lado frágil. Também eu estou meio surdo e não sei se quero ouvir o que você tem a me dizer. Prefiro mastigar a carne mal passada que resta em minha boca cheia de dentes enquanto meus olhos fitam os seus, castigados pela vida e que há tempos eu conhecia, mas jamais me deixei enxergar de verdade.

Não que eu seja suscetível ao sofrimento. Meu ou seu. Muito pelo contrário. Há anos eu teria me ausentado e me encolhido numa bolha frágil e nada nem ninguém me faria ter uma outra visão. Eu também estaria cego e talvez por isso não seria capaz de perceber lágrimas nos meus olhos, já que tudo seria tão surreal para mim: um ser sempre tão duro, tão frio, que vive despertando inquietantemente com qualquer burburinho ao romper das manhãs.

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