sábado, 1 de setembro de 2012

A reboque

Quinta-feira. 16h10. Para variar, estou atrasado. E para piorar, rua Marquês de Pombal engarrafada. Ônibus de um lado, caminhões do outro, e eu ali, espremido e ávido por uma vaga para estacionar meu carro. Mensalão comendo solto, um deputado já condenado, pautas inacabadas, três páginas do site para editar, eleições Brasil afora, cabeça em disparada, até que entre uma kombi e um cone, vi que tinha espaço suficiente e não pensei duas vezes: liguei a seta, engrenei a ré, deixei que o carro que estava atrás de mim ultrapassasse e manobrei todo orgulhoso e agradecido à sorte de encontrar uma vaguinha a poucos metros da entrada do jornal. Peguei minha mochila, meu maço de cigarros, pendurei o crachá no pescoço, me benzi e fui para a guerra. De lá não sairia antes de meia-noite.

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Não sei quem foi que me disse outro dia que a vida é um campo de batalhas. Já faz muito tempo, porém, que eu aprendi que é preciso matar um leão por dia. De tanto ouvir esta frase quando pequeno, eu morria de medo de virar adulto porque achava que mais cedo ou mais tarde eu ia dar de cara com o rei da selva sabe-se lá aonde e acabaria esquartejado, servido em pedaços para uma família de felinos esfomeados e com minhas sobras disputadas por hienas e urubus. Coisa de criança. Bastou eu crescer um pouco para saber que não existiam leões soltos nas ruas da cidade. Foi então que me dei conta de que eu vivia entre selvagens. Éramos todos animais, eu pensava. Mas eu pensava. E sendo assim, fazia toda a diferença. Não que o que eu pensasse era o certo, até porque, nunca quis ser o certo. Gostava mesmo - e gosto até hoje - de caminhos tortos, de gestos espalhafatosos, de gargalhadas intermináveis, de olhar no olho do outro quando estou falando, de prestar muita atenção ao que estão me dizendo, de ficar em silêncio, de me recolher e ter o direito de desaparecer por um tempo.

Porque é preciso descansar da luta.

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Quinta-feira. 22h30. Desde que cheguei no jornal, só fui ao banheiro duas vezes. Volta e meia brinco com meu chefe dizendo que o jornal vai ter de me dar um rim novo quando eu sair de lá. Fora um pulmão, um coração e muitos fios de cabelo.O ritmo de trabalho numa redação é na maioria das vezes brutal. Informação em cima de informação, versões, fatos, denúncias, bastidores, falatório, telefones que não param de tocar, o segundo clichê não pode atrasar, olhos vermelhos revelando cansaço, fome, dor de cabeça, vontade de me esticar. Resolvo descer, fumar um cigarro e dar uma olhada no carro, só como quem não quer nada. Cadê o carro? Foi ali mesmo que eu parei? Olhei para um lado, para o outro, mais adiante, na rua detrás não foi. Tudo isso numa fração de segundos. Roubaram? Rebocaram? O segurança do jornal não soube responder, tinha acabo de chegar.

Traguei o cigarro até a guimba com vontade, num misto de raiva e resignação. Dali a uma hora e meia eu tinha que estar com minhas páginas prontas. Entre uma matéria publicada e uma foto legendada, dei uns dez telefonemas, acessei os sites do DETRAN e da Guarda Municipal na ânsia de descobrir se meu carro estava em algum depósito. Minha manchete era: PT anuncia substituto de João Paulo Cunha para eleição em Osasco. Minha preocupação era: onde está meu carro? Liga daqui e clica de lá, descubro que ele foi rebocado às 16h40 e que está no depósito da rua Benedito Hipólito, bem ali atrás do jornal. Imprimo os boletos, me conformo com o prejuízo e me preparo para acordar cedo no dia seguinte, acompanhado do leão que não me abandona nunca nessas horas.

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Sexta-feira. 9h40. Estou numa festa, a mãe do marido da minha cunhada me oferece um pedaço de quindão e antes mesmo que o provasse, toca o celular e eu acordo. É a Claudia, a leoa, me perguntando se eu não ia buscar o carro e se eu queria carona. Respondi que já estava levantando, mas que ainda ia passar no banco para pagar as taxas e que pegava um ônibus mesmo, sem problemas. Foi o que eu fiz. Corri no banco, enfrentei uma fila desumana, paguei o que devia, entrei num ônibus, paguei a passagem e só então me dei conta de que esqueci as chaves do carro em casa. Fiz sinal pro motorista parar, voltei em casa, peguei a danada da chave, desci minha rua, vi que não tinha mais trocado para pagar outra passagem, tiro R$ 50 do bolso, dou para o trocador que olha pra mim de cara feia.

Minha cara está mais feia que a dele.

O trânsito está bom, chego no depósito rápido, pouca gente na fila, o sistema está fora do ar e sem previsão para voltar. Respiro fundo. Conto até dez. Dou um pulo lá fora. O sistema volta, sou atendido e uma gordinha por trás das grades me diz que está faltando um documento autenticado e que sem ele meu carro não pode ser liberado. Eu pergunto para ela se ela tem noção da quantidade de praga que eu estou rogando naquele exato momento e ela me diz que tem o santo forte.

Sorte a dela.

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O relógio da Central do Brasil marcava meio-dia quando eu entrei de novo num ônibus para voltar pra casa e buscar o tal documento autenticado, pensando em quantas coisas podem dar errado e que eu poderia esbravejar, xingar, gritar, dizer que o prefeito é isso, que o governador é aquilo, que só tem ladrão, que nada é para facilitar a vida do povo e por aí vai. De nada adiantaria, eu falei baixinho. Num banco ao lado, uma mulher com os pés inchados e um vestido surrado de dar dó jamais poderia imaginar o que se passava comigo. Na minha frente um casal de idosos com olhar sossegado também não. O trocador, jovem, me parecia cansado de tanto que travava e destravava a roleta entre freadas e buzinas. Sequer olhou para mim quando eu lhe dei o dinheiro da passagem.

O motorista parecia atento.

Eu ainda não tinha almoçado, precisava tomar um banho, levar meu cachorro para fazer xixi e cocô na rua, voltar ao depósito, torcer para não faltar mais nada e poder liberar meu carro e correr para não chegar atrasado no jornal. Atualmente eu vivo correndo, sempre sem tempo para nada. Olho pela janela, está um dia lindo lá fora, um céu azul me chamando pra dar um rolé, o final de semana chegando e então me dou conta que tudo pode ser muito engraçado: o reboque, a gordinha atrás da grade, a chave que eu esqueci, as taxas que eu tive de pagar, os leões querendo me engolir, todo mundo na batalha, na selva, na luta, na guerra que não para.

A vida às vezes tira sarro da nossa cara. A vida é piada.

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