Confessou que havia voltado para a terapia, mas acho que ele chegou a comentar isso comigo numa das últimas vezes em que eu o procurei. Depois de tantas perdas recentes, voltar para a terapia foi a decisão mais acertada da sua vida, eu lhe disse. Que precisava fazer alguma coisa por ele depois do tanto que fez por quem ele amava, depois de tudo o que ele passou, depois de tudo aquilo que se foi. Com a voz meio travada, ele me disse que uma parte muito bonita dele havia ido embora e eu tive medo de que ela fosse a sua melhor parte e que só tivesse restado, então, a sombra.
Ele falava tanto que eu me esqueci de dizer-lhe que eu me senti muito só esse tempo todo. Por mais que eu tivesse companhia, por mais que eu saísse para me divertir, por mais que eu tivesse com quem conversar, eu me sabia só. Ele também estava só e aquilo o perturbava, mexia com ele, tirava seu sono. Em mim vieram as gripes incuráveis, as dores físicas, a tosse encatarrada e a porra de uma tristeza tentando arrombar a minha porta dia após dia. Foi quando já não aguentava mais que ligou para o terapeuta. Agora, ou vai ou Reich, ele brincou.
Com tantos anos de terapia reichiana, não era muito difícil perceber onde suas frustrações se manifestavam em seu corpo. Ele me revelou que desta vez havia voltado às sessões consciente de que essa bronquite eterna, essa falta de ar constante, esse pulmão fragilizado, isso tudo é tristeza, é medo de se encher de ar, oxigênio, combustível da vida, e andar para frente. Enquanto ele falava, eu lembrei que também devo seguir o meu caminho, seja lá que caminho for. Ele também me fez perceber que eu preciso esquecer a dor do mundo que eu cismo de carregar. E é verdade. Por que eu busco esse peso? Por que, meu Deus, eu teimo em carregar essa tonelada nas minhas costas?
Mas eu não disse nada na hora.
Ele, ao contrário de mim, não se furtou em repetir várias vezes que estava louco para me encontrar e me contar todas aquelas coisas, colocar tudo para fora, tudo o que sentiu nesses últimos meses. Sem o menor constrangimento, disse que eu o conhecia mais do que qualquer terapeuta e que ainda guardava uma confiança enorme em mim. Não sei por que, pensei. Logo eu, que me iludo tanto. Eu, que projeto muito do que eu desejo no outro. Eu, que idealizo, que sonho, que crio diálogos, frases que eu talvez nunca venha a usar, faço da minha vida uma verdadeira novela. E eu me engano muito, é lógico.
Foi quando eu consegui lhe dizer que havia me enganado e que aquela seria a última vez que nos víamos. Fiquei com a nítida sensação de que ele não queria ir embora, que seria só um hiato, não um para sempre. Era final de tarde de verão. Estava muito quente. Um vaivém de gente. Calçadas disputadas, bares lotados, amigos, casais de namorados, mãos dadas, beijos, abraços, cervejas, encontros e eu ali, naquele pesadelo do adeus, olhando ele subir a rua até desaparecer, sem acreditar que seria até nunca mais.
Mas foi.
(E eu ainda guardo a lembrança daquela primeira vez, quando seus olhos vieram morar nos meus.)
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