Há mais de três meses que não caía uma gota de chuva sequer naquelas terras. Nuvens carregadas até pincelavam o céu de negro vez ou outra, mas logo se dissipavam e o azul infinito dominava a paisagem sem a menor cerimônia. O ar estava seco. A pele, os poros e as relações também. Os dias pareciam correr cansados e as noites, quentes e insones. Já não sabia mais há quanto tempo estava ali. Confessou-me mais tarde que lembra de ter ligado para ele no dia de sua morte e me disse, também, que nunca esperava que aquilo tudo um dia tivesse um fim. Mas era o corte que faltava, a ruptura abrupta, a ferida aberta e a saudade que se espalhava por todo o seu corpo feito vírus sem cura que lhe trouxera até ali.
- O que se afasta de mim me pertence, era a frase que repetia inúmeras vezes em meus ouvidos como se eu não estivesse prestando atenção em tudo o que me contava.
Eu custei a entender o que estava por trás daquela conversa toda. Por vezes pensei se tratar de sonho ou de alguma alucinação. Volta e meia eu costumava me deixar levar por devaneios e quando, mais cedo ou mais tarde, eu dava por mim, tudo não passava de fruto da minha imaginação. Eu até usava uma coisa ou outra para poder me iludir um pouco, mas daquela vez, não. Tudo era muito real. Aquela pessoa realmente existia e estava ali na minha frente, feito espelho que se quebra, a se permitir mosaico de si mesma. Engraçado é que há anos não nos víamos. Sabíamos um do outro, era como se caminhássemos lado a lado, mas não nos olhávamos, não nos procurávamos mais. Era como se algo tivesse se perdido entre nós. Como se tudo tivesse secado.
Mas naquela noite choveu. E conversamos. E choramos juntos. Inundamos nossas faces. Regamos nossas histórias. Transbordamos nossas memórias há muito esquecidas em terreno áspero e longínquo. Lembro que demos as mãos e foi então que, por muito tempo, não sei quanto, ficamos em silêncio. O barulho da chuva forte escorrendo no telhado da velha casa de paredes amarelas era o único som que havia ali. Tenho pra mim até que por alguns minutos paramos de respirar. Nossos corpos feito estátuas, inertes, tudo ao redor, mas tudo ao mesmo tempo ausente. Até que veio o vento e com ele as folhas das árvores que se sacudiam lá fora se espalharam por toda a sala, levantaram a poeira, bateram as portas, escancararam as janelas e aquele movimento todo fez com que despertássemos. Nossas mãos se soltaram. Olhos nos olhos. Corações a mil e os pensamentos feito as folhas espalhadas pela sala, bagunçando tudo, só que dentro de nós.
- O pacto era com a felicidade, eu consegui dizer num sopro de lucidez. Mas talvez você não tenha entendido o real significado e tenha te restado só esse vazio, esse oco, esse deserto onde você resolveu se instalar.
Não esperei resposta. Disse isso como se fosse uma verdade absoluta - tenho essa mania desagradável - e levantei para trancar as janelas e abrir algumas portas. Só ali onde estávamos havia luz. Os outros cômodos estavam todos apagados. O chão de tábua corrida rangia a cada passo que eu dava e eu podia perceber o quanto havia de solidão em mim também. O quanto meu pacto havia se quebrado, partido, estilhaçado e eu vi que eu era da mesma matéria que o pó que sujava meus pés descalços ali naquela noite de chuva forte depois de meses de estiagem.
- Eu também sou esse pó, respondeu, então, em voz baixa, quase um lamento. Eu sou o pó, mas há muito mais em mim. Eu sou o vento, sou o sol que castiga e sou essa chuva que alivia e traz alento. Eu sou o rio que se perde no mar, a fonte inesgotável da vontade, o brilho que te guia, os braços que te carregam. Eu sou o seu caminho. A sua estrada está em mim.
- Mesmo que eu me afaste?, perguntei.
- Não adianta se enganar e levantar com a desculpa de que vai trancar janelas e abrir algumas portas porque tudo acontece exatamente como deve acontecer, você sabe. É correnteza, é fluxo, é movimento, fluidez. Nada vai conseguir barrar. Chega a ser insensatez não perceber. Somos espelhos, lembra? Eu conheço tanto de você quanto você conhece de mim.
- Mas o que tem a ver se somos reflexo um do outro ou não? Onde foi que isso entrou em jogo? Foi você quem chegou aqui junto com a chuva e desandou a falar. Não te perguntei nunca nada. Há anos não lembrava da sua existência. [Mentira] Você hoje apareceu do nada, junto com toda essa chuva, e veio me contar do dia da sua morte, das suas feridas abertas e da saudade que machucava seu peito. Parecia alucinação.
- Anunciação, não alucinação. Não esqueça que eu trouxe, além da minha morte, a chuva que lava, que rega, que regenera e mata a sua sede e a minha.
Ouvi trovões lá fora.
(Quem é esse outro que está sempre ao meu lado?)
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