domingo, 7 de setembro de 2014

Hábito

Naquela manhã, ele, como de hábito, não tomou café, não leu os jornais, não ligou a TV. Naquela manhã, ele, como de hábito, não falou com ninguém. Andou pela casa descalço, abriu todas as janelas, deixou a luz entrar. Como de hábito.

Naquela manhã, havia com ele todos os não saberes, todos os questionamentos acumulados durante as noites mais escuras. Ele, então, como de hábito, abriu os braços, fechou os olhos, encheu o pulmão de ar até quase estourar. Um dois, três, quatro, cinco, seis, contou, e soltou tudo bem devagar.

Às vezes a vida é cristal transparente. Visão de lente sem filtro. Manhã de luz muito rara, pensou.

Pensou também no seu analista e no por quê de nunca mais tê-lo encontrado. Há certas coisas que somem de nossas vistas. Isso é fato. Melhor se fosse apenas um hiato.

Lembrou das tardes nas encostas do bairro da Glória, do cheiro de chuva que batia na pedra onde a água escorria, do vai e vem nas ladeiras altas, do sobe e desce nas escadarias, num tempo em que tudo dentro dele já não era só vazio e silêncio. Uma conversa interna, tantas outras personas, algumas não tão íntimas.

Quantos ainda lhe caberiam ser?, perguntou.

Toda aquela multiplicidade aparente e a vida, bem ali na frente, feito boca de cena, palco iluminado, peça de teatro. Tudo isso logo naquela manhã em que ele, como de hábito, queria respostas prontas e diretas.

(como se a vida já não fosse o óbvio)

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