domingo, 8 de janeiro de 2012

A fuga sob o céu do Aterro

Ele sequer se despediu. Sumiu entre os pilotis pensando se deveria ter falado tudo aquilo que falou. Não costumava se abrir com ninguém, gostava de manter sempre uma certa distância, o que para algumas pessoas podia parecer frieza. Ele não se importava. Na verdade poucas coisas tinham importância para ele: um belo dia de sol, a poesia de Mario Quintana, a saudade que sentia dos seus pais e de seus velhos discos de vinil. Mais nada. Então por que, pensava ele, resolveu se expôr daquela maneira? Logo ele, cujo sonho era se tornar invisível, quase um desejo inconsciente de passar em branco pela vida.




Desde moleque sentia medo de se relacionar. Foi uma criança retraída, de poucos amigos, aluno brilhante e de comportamento exemplar diante de olhos tão repressores. Filho único, vivia na barra da saia da mãe e sob as regras incontestáveis do pai, um ex-militar da marinha que sempre proibiu a esposa de trabalhar. Nunca contrariou a autoridade do pai nem a subserviência da mãe. Gostava da imposição do silêncio em sua casa, pois sabia que assim nunca seria obrigado a falar mais que o necessário. Se havia coisa que o incomodava era gente que falava demais.



Um dia ele se deu conta de que o amor também o incomodava. Na verdade, o amor o agredia. Nem todos os romances que devorou na solidão do seu quarto ou as centenas de filmes que gostava de assistir desacompanhado, aos sábados, na sessão das cinco no cinema em Botafogo foram capazes de despertar qualquer sentimento mais nobre a respeito de uma relação a dois. Sexo? Ninguém precisa de amor para se satisfazer sexualmente, ele dizia.



Era jovem ainda, vinte e oito anos, e já sabia vestir armaduras. Pouco sorria e nunca se deu conta de seus olhos tristes. Mas ela sim, desde que o viu pela primeira vez, ao entrar na repartição quase que imperceptivelmente para começar no novo trabalho numa manhã ensolarada de março, revelando toda a fragilidade que só os mais sensíveis são capazes de perceber. Aquele rapaz que parecia tão sério, tão alheio a tudo e a todos, na verdade também percebeu que ela existia. Pouco a pouco ele foi se aproximando dela, fosse para tirar alguma dúvida ou prestar algum serviço. A pausa para um café, uma ou outra gentileza e em menos de uma semana já saíam para almoçar juntos.



Não demorou muito e combinaram de assitir a um filme na cinemateca do MAM no final se semana. Um filme francês que ele nunca mais lembrou o nome porém nunca mais esqueceu do que sentiu ao deixar seu braço encostar no dela desde o início da sessão. Suas mãos gelaram enquanto o fogo tomava conta do resto do seu corpo ali mesmo naquelas cadeiras desconfortáveis da sala de cinema e ele foi capturado por um desejo de que aquela história nunca mais terminasse e que os personagens na tela congelassem e que aquele roteiro durasse por toda a eternidade. Mas na vida real tudo acaba, ele sabia.



Depois do cinema foram andar pelos jardins do museu, dividiram uma água de côco num quiosque de frente para a baía de Guanabara. Conversaram um pouco. Amenidades. Ela gostou do filme. Ele disse que também havia gostado. Já estava anoitecendo e o céu parecia tingido de rosa. A cor do amor, ela falou. Ele não respondeu. Fingiu que não ouviu, disse que precisava voltar para casa, tinha uns textos para ler e outras tantas coisas a fazer. Disse também que ele não deveria estar ali, que tinham feito tudo errado, que eram apenas amigos de trabalho e que não poderiam misturar as coisas. Deixou escapar que não acreditava no amor, que nunca iria se apaixonar, não queria saber de relacionamento sério e que nada iria afastá-lo de seus objetivos, mesmo que ninguém nunca soubesse que objetivos eram esses.



Foi então que ele pediu que ela fosse embora, que nunca mais falasse com ele, que fingisse que ele não existia, que nunca se conheceram. Ia tentar uma transferência para Brasília na segunda-feira, há muito já pensava nisso e que ela deveria odiá-lo e jamais lembrar dele como alguém que precisasse amar e ser amado porque isso não era verdade. Ela permaneceu calada, sem entender tamanho destempero, já que há poucos instantes parecia estar tudo bem, eles estavam se conhecendo, havia sido uma tarde agradável, um programa interessante, um lugar lindo, uma sensação boa até. Quando ela poderia imaginar que ele teria tantos problemas e neuroses e que fosse capaz de lhe dizer tantos impropérios? Logo para ela, que desde o primeiro dia se mostrou inteira, disponível, solidária, um porto seguro em meio ao absurdo que muitas vezes é a vida naquela repartição.



Ele não quis saber. Virou-lhe as costas e foi embora. Ela ficou ali sozinha, parada, vendo as luzes da cidade se acenderem sob o céu do Aterro enquanto ele desaparecia. Em poucos minutos não havia sequer sua sombra. Não havia nada. Nem ele, nem ela, nem ninguém. Tudo se dissolvia. O fim antes mesmo do começo. O medo. A incerteza. O desequilíbrio. A loucura. O amor. O sonho. A fantasia.

Um comentário:

  1. Ah, os manés... Bota força no protagonista, garoto! Ou seria ele justamente o contrário? Forte por não precisar do amor?

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