sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Brasileia

Quinta-feira, 5 de janeiro de 2012, 16h10. O ano mal começara e eu acabava de chegar na redação do jornal onde trabalho. Dei, como de praxe, meu cordial boa tarde a todos, não sem antes cutucar uns e outros no caminho até minha mesa. Brincadeirinha inconveniente, eu sei, mas que, entre tantas, já fazem parte do meu folclore. Antes mesmo que eu sentasse para me logar no computador, minha subeditora abre seu sorriso característico, vira pra mim e diz que eu tenho a missão mais legal daquele dia: editar um vídeo.




Dias antes, o jornal havia publicado a primeira do que seria uma série de matérias a respeito da invasão de haitianos no Acre. O que eu sabia era que cerca de 1300 imigrantes ilegais vindos do Haiti haviam cruzado a fronteira entre a Bolívia e o Brasil e estavam instalados num hotel de uma cidade chamada Brasileia. Não tinha visto uma foto sequer de nenhum haitiano lá pela região Norte do país. Nem eu nem ninguém. As imagens que eu ia ver eram as primeiras a chegar na redação.




Abri minha mochila, peguei meu bloco, minha caneta, meu maço de cigarros e fui até a ilha de edição dar uma olhada no material. As primeiras imagens eram confusas, dois ou três vídeos, não lembro ao certo, de dois haitianos lavando roupa, umas panelas cheias de comida e uma tentativa de entrevista com um negro forte e de dentes muito brancos que repetia incesantemente que precisava trabalhar. Só com aquele material eu não poderia fazer nada. Eu edito, mas não faço mágica, foi o que eu disse pra minha subeditora. Pede para a Cleide arrumar uns personagens e fazer umas imagens da praça e do hotel onde os haitianos estão que é para eu poder montar uma história, completei.




Nem foi preciso. Profissional feito ela só, Cleide já tinha conseguido mais material e em pouco tempo enviou lá do Acre para a redação do jornal, na Irineu Marinho, vídeos e fotos suas e do Michel Filho, seu companheiro de pauta, que encheram os olhos de quem estava por perto na hora da edição. Eu confesso que esperava encontrar imagens do apocalipse ou a visão do inferno. Imagina? Mais de mil haitianos superlotando uma cidade escondida na região mais desabitada do nosso país não deveria ser nada bonito de se ver. Mas eu estava completamente equivocado e o que eu vi me deixou hipnotizado. A mim e à Suzane, minha parceira no resultado final de todo o material de vídeo.




Era muita imagem, de uma riqueza e de uma beleza impressionantes. Mais de mil haitianos reunidos numa praça de uma cidade típica do interior do Brasil e espremidos num hotel cuja lotação máxima era de cem hóspedes. As fotos da distribuição de pães na hora do café da manhã em pelo coreto da cidade, as entrevistas com as autoridades locais e a preocupação que tinham com a alimentação, a saúde e a situação ilegal daqueles imigrantes que chegavam ao país em busca de um futuro mais digno me fez ter a certeza de que eu poderia editar um vídeo bem interessante para o site. Vi todas as imagens, todas as fotos, todas as entrevistas e desci para fumar um cigarro e pensar num formato de edição. A generosidade do brasileiro e a esperança do haitiano foram fumar comigo.




Subi e numa afinidade única, eu e Suzane terminamos um primeiro corte em menos de duas horas. Na verdade, estava praticamente pronto, faltando apenas a abertura, uma trilha, alguns ajustes e uma ou outra imagem de fundo. A chegada, o sonho e a realidade da situação dos haitianos no Acre estavam na lata, como a gente costuma dizer quando um vídeo ou um filme ou algo do gênero fica pronto. Eu saí da edição com uma pontinha de orgulho e a certeza de ter feito um trabalho bacana e que ia ilustrar uma das reportagens mais inspiradoras que eu já vi nestes meus meus rasos anos de redação.




No dia seguinte, sexta-feira, foi a vez de mostrar o vídeo já finalizado para os chefes. Ambos aprovaram, não tinha como não ser diferente. A Cleide ligou do Acre para dizer que adorou, disse meu editor. Ela mandou um e-mail elogiando e agradecendo mais uma vez pela parceria, eu li mais tarde. Não era a primeira vez que eu editava material das reportagens dela. Já havia feito dois ou três antes e sempre com um ótimo resultado. Mas aquele, dos haitinos, era diferente. Tinha material humano o suficiente para emocionar e fazer com que o povo brasileiro se desse conta de como somos um povo generoso. Um povo que não ergue muros ou cercas elétricas em suas fronteiras. Um povo que sabe repartir o pão e que dá, mais uma vez ao mundo, este exemplo de como receber imigrantes de um país arrasado por tantas desgraças e que só querem um lugar ao sol e a chance de sobreviverem neste planeta que muitas vezes parece ser habitado pela ganância, pelo egoísmo e pelo protecionismo que exclui, fere e mata.



O vídeo foi publicado sábado à noite no site e ficou praticamente a semana inteira em destaque até que na quarta-feira chega um novo material para ser editado: mais fotos e um depoimento em vídeo do fotógrafo Michel Filho, contando como foi sua experiência no Acre. Mais uma vez eu e Suzane. Mais uma vez uma história bonita para contar. Desço sem pestanejar, costuro uma narrativa de menos de cinco minutos - o que em internet pode se transformar numa eternidade - em cima do depoimento do Michel, vejo imagens novas, aproveito outras do antigo material, digo que a trilha precisa ser emocionante. Suzane sabe tudo, faz os ajustes, cria o clima do vídeo e pronto, temos mais um na lata.



É sexta-feira de uma semana intensa e a impressão que tenho é que o ano passado ainda não terminou. Emendei a ressaca do ano novo com o plantão de final de semana e fazia 12 dias que eu entrava e saía sem descanso naquele jornal. São 16h20, estou atrasado e chego na redação louco para as horas voarem. O segundo vídeo dos haitianos foi publicado. Meu chefe está orgulhoso do material. Michel, o fotógrafo, manda e-mail agradecendo. Minha subetidora assiste e se emociona. Eu também tenho andado emocionado ultimamente, eu pensei numa fração de seguindos, mas antes precisava terminar uma matéria para segunda-feira. Vida que segue.

Vídeos:

A situação dos haitianos no Acre

O relato do repórter fotográfico Michel Filho





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