sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Assepsia

Chovia copiosamente, feito um choro incontrolável e inexplicável naquela tarde pálida de sexta-feira. Fazia frio até. De ruas vazias, silêncio, solidão, preguiça e algumas xícaras de café sem açúcar. Faltava-lhe o sono, mas não o desejo de ficar na cama entre os tragos de cigarro sem filtro, o controle remoto e as centenas de canais inúteis e fúteis da tv a cabo. Os livros na cabeceira há muito já não lhe revelavam frases sem sentido e a pele seca a coçar e a soltar dos ossos ao mesmo tempo em que os pelos que não paravam de crescer em suas narinas.

A porta do quarto estava trancada, as luzes do apartamento apagadas, o piso do enorme corredor que ligava a sala aos demais cômodos havia sido encerado ainda naquela manhã e refletia a imagem do nada. Paredes nuas, discos velhos na estante e um cheiro forte e vulgar de essência de eucalipto. Cada coisa em seu lugar meio que para dar um aspecto de assepsia moral, sabe-se lá, o clima de tranquilidade criado, artificialmente estabelecido, como se pudesse esconder para debaixo do tapete a desordem e frear o fio da meada. De nada valia.

Ao mesmo tempo sentia vontade de pegar o telefone e ligar para quem quer que fosse e dizer que agora estava tudo bem, que a tempestade havia passado e que dava pra enxergar lá longe uma nesga de esperança de que tudo seria refeito e que aquela pressão em seu peito não existia mais. Que a luta havia sido árdua e as dores lancinantes foram como aprendizado, só não se sabe bem ao certo do quê ou por quê, mas deixaram marcas profundas e capazes de mudanças inimagináveis.

Como o prédio que do nada tomba e carrega vidas entre escombros do dia a dia e se desfaz em nuvem de cimento e cal, o mundo também caía ao seu redor e lhe derrubava e carregava junto o que jamais seria. Era assim que a vida se apresentava e era assim que ela queria. Em meio a tanta inquietude e fúria, onde muitas vezes só há o desassosego da mente e a malícia do olhar e na garganta doem as palavras soltas sem compaixão, sem amor, sem sentido algum.


Poderia até mesmo confessar sem esforço o quão difícil foi chegar ao fundo do poço e perceber que não há saída, que a vida é para ser vivida de uma vez só, que a sua história não pode ser reescrita e o que foi feito, foi feito, e o que passou não tem como voltar mais. Só no baú das lembranças. Boas e ruins.

Poderia também dizer que os anseios foram suprimidos e tudo o mais foi evitado e que vai ficar guardado a sete chaves o que sequer um dia existiu. A melancolia e a tristeza lhe fizeram companhia durante todo aquele tempo, eram-lhe fieis feito duas ninfas encantadoras e apaixonadas, conscientes do mal e das delícias que trazem em si. A inspiração profunda, a loucura iminente, a sabedoria e toda aquela coisa que faz a gente se mover e procurar saber e entender o que não faz nem nunca fez sentido.

Nunca saberia dizer, porém o que sentira até então. Como de fato tudo aquilo se passou, como foi que tudo aquilo se deu. Não saberia responder ao menos em que dia se perdeu ou por que resolveu mais uma vez abrir os olhos e respirar fundo naquela tarde em que chovia copiosamente feito um choro incontrolável. Inexplicável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário