quarta-feira, 24 de junho de 2009

Eleanor Rigby


Há exatos 18 anos eu vivia o auge de minhas experimentações religiosas. Depois de ter sido criado sob os dogmas da igreja católica, depois de conhecer a palavra de Deus através de alguns "missionários" que se autointitulavam mensageiros do Senhor, depois de conhecer e respeitar alguns centros de umbanda e candomblé, aos 22 anos resolvi subir a Estrada das Canoas, que liga São Conrado ao Alto da Boa Vista e ver de perto o que era o Santo Daime. A primeira vez que ouvi falar foi no programa do Flávio Cavalcanti, so não sei se na TV Tupi ou na Band. De certo que se alguém aqui disser que ainda se lembra do Flávio Cavalanti vai acabar entregando a idade. Melhor então ficar calado. O apresentador entrevistava a atriz Lucélia Santos. Ela mostrava um vídeo com imagens da comunidade na floresta. Todo mundo era tranquilo. Todo mundo cantava. Todo mundo dançava. Tudo na maior paz. Eu fiquei curioso.

O tempo passou. No comecinho dos anos 90 tinha um programa chamado Documento Especial, na extinta Rede Manchete, que eu gostava muito. Era um híbrido de Globo Repórter com Amaral Neto, outro que eu acabei de tirar do fundo do baú. Volta e meia tinha umas pautas interessantes e uma certa noite o programa era sobre o Santo Daime e me trouxe de volta aquela curiosidade esquecida lá com o Flávio Cavalcanti. Por coincidência eu tinha um amigo dos meus tempos de caserna, o Ricardo, que frequentava a igreja do Santo Daime em São Conrado. Pedi pra ir com ele. Régis, outro camarada nosso, também quis ir. Fomos os 3. De ônibus.


Lembro que ao sair de casa avisei minha mãe onde eu iria. Ela não entendeu muito bem do que se tratava mas não fez nenhuma observação a não ser "leva uma casaco porque vai esfriar". E esfriou mesmo. A igreja fica no meio da Floresta da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo, de cara para a Pedra da Gávea. Um lugar mágico. Especial. E eu sequer imaginava que viveria momentos mágicos e especiais ali. Desde aquela primeira vez. De um lado, os homens. Do outro, as mulheres. Todos devidamente paramentados. As mulheres, de saia plissada verde e uma coroa; os homens, de terno branco. Ambos com uma estrela de Davi dourada no peito. Os cânticos, que eles chamavam de hinos, lindos, diziam exatamente o que precisávamos ouvir e nos ensinavam as histórias que nunca tivemos muita paciência para ler na Bíblia. O bailado era pra lá e pra cá, num vai-e-vem inebriante. No meio disso tudo era servido o chá. Amargo até dizer chega. Muito pior que chá de boldo. Até hoje, só de lembrar, sinto minha língua travar. E de repente o silêncio. Luzes se apagavam. Só velas acesas sobre uma mesa repleta de cristais e imagens no centro do salão. Todos concentrados. Todos tentando se aquietar e aquietar suas mentes. Uns em posição de lótus, outros sentados em cadeiras de plástico e alguns de pé, mas todos no mais profundo silêncio.


Fiquei no fundo do salão. Régis do meu lado. Minhas costas doíam um pouco por conta do esforço em me manter imóvel. Umas mulheres de branco passaram andando no canto esquerdo da igreja enquanto uma outra começa a cantar um hino sobre os poderes da floresta. Eu estava com frio e lembrei da minha mãe e como foi bom ter levado um casaco. Em instantes era como se nada ao meu redor me perturbasse, como se nada me chamasse a atenção. Só me importava com o que eu "via" internamente. E nunca mais esqueci daquela mão estendida na altura de meu peito, surgida de dentro de mim, como se eu estivesse sendo apresentado a mim mesmo. Uma sensação boa e estranha ao mesmo tempo. Calor e frio. Perda da noção de tempo. Até que entre um hino e outro as luzes foram se acendendo, homens e mulheres levantando e uma enorme cãimbra me impediu de ficar em pé por alguns segundos. Nada demais. Não demorou muito e estávamos todos a postos para mais um bocado de bailado e de hinos. No total, mais de seis horas.

Na semana seguinte tive de levar minha mãe. Meu irmão também quis ir. Depois foi a vez de uns amigos, do meu pai, de uma tia, um tio. Até minha mulher foi. Na época a gente estava só começando a namorar, mas eu já não ia com tanta frequência. Eu já me deixava consumir pelo trabalho em produção de comerciais, já estava contaminado pela correria do dia a dia. Foram quase 5 anos no Daime. Quase 5 anos que me valeram por muitos anos de análise, talvez. Ali, naquela igreja, era só eu, o eu que existe em mim e o eu que eu não conhecia. Continuo não conhecendo muito bem, pois a cada dia me apresento um pouco mais. Ou me escondo, não sei. Só sei que hoje acordei mais pra Beatles que pra Rolling Stones e acabei escrevendo sobre o Daime. Dá pra entender?

A foto que ilustra este post é da estátua de Eleanor Rigby, em Liverpool. Não sei se ela existiu de verdade, mas a música é linda, uma das que mais gosto da dupla Lennon e MacCartney. Fala da solidão dos mais velhos. "Oh, look at all the lonely people".

4 comentários:

  1. Interessante o fato de sua mãe e amigos terem ido depois. Geralmente quando a mãe diz paraq levármos um casaco pra não passar frio, estamos indo pra algum lugar que ela nem gostaria de saber que estávamos indo e nestes lugares o que menos queremos usar é um casaquinho. Legal o texto. Me responda se puder: na estatua da leonor Riby, tem um casaquinho jogado no banco ao lado dela? se tem,ela como muitos de nós não usou...

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  2. Muito bom o texto. Achei interessante o fato de sua mãe ter ido depois. Geralmente quando elas (as mães) nos dizem pra levar um casaquinho, não imaginam e nem gostaria de saber onde eswtamos indo, pois o tal "casaquinho" é a última coisa que precisamos nestes lugares. Para vc serviu e ela acabou indo depois. Se ela levou o casaquinho eu não sei.
    Uma dúvida: na estátua em qustão, parece que há um casaquinho jogado ao lado, no banco. Se há, deve ser a mãe dela que aconselhou levá-lo. abraço com carinho
    Roberto Blattes

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  3. tv tupi? alguém interessado em entrevistar Lucélia Santos? tem tempo, meu camarada.

    onde é essa igreja? tenho andado muito pela floresta, mas a única igreja que me lembro é uma capelinha católica...

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  4. Pior que me lembro do Flávio Cavalcanti..." Nossos comerciais, por favor". rsrsrs
    Marcio, adorei seu texto. abração!

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