quarta-feira, 15 de junho de 2022

O que restou

Eu não sei o que ainda resta de lúcido em mim. Às vezes amanheço assim, entre névoas e memórias nada ortodoxas que há muito cismaram de não me abandonar. São como versos ruins, poesias sem rima, frases mal escritas num pedaço qualquer de papel esquecido sobre a mesa empoeirada da velha sala de jantar. Acho que é porque tenho tido sonhos barulhentos ultimamente e neles eu ando pelas cercanias da cidade alta, ladeiras, becos, bares, lares, tudo sempre tão deserto. Não sinto frio nem calor, não falo nada, mas ouço sempre as mesmas vozes sussurrando segredos esquizofrênicos em meus ouvidos até a hora em que as luzes se apagam. É quando acordo com a certeza de que eu sempre estive só.

Às vezes a vida dá um nó, a garganta aperta, surgem os bichos de sete cabeças, todos eles dentro da gente, martelando, batendo, gritando, sacudindo meias verdades pra lá e pra cá. Desconfio mesmo de que eu nunca tive um rumo, que eu sempre andei às cegas por essas indelicadezas da vida, nascido de mãe parideira e pai desconhecido Quem me ensinou a desviar do erro fui eu mesmo. Lá se vão mais de 50 anos e eu ainda não sei se fiz o certo. De fato eu nunca entendi nada direito e até hoje paira a dúvida do que eu posso ou devo fazer. Não me pergunte o porquê, mas nesses dias em que amanheço entre névoas é melhor mesmo não ter nenhum traço de lucidez. Nada.

São dias sem o menor sentido, de manhãs pálidas e um vento frio constante que atravessa meu corpo feito navalha afiada. Não ouço mais o canto dos pássaros, mas há nuvens escorregando ligeiras pelo céu como se quisessem esbarrar neste lugar onde me encontro. Daqui do alto não vejo mais o mar e é então quando eu canto de saudade. Faz tempo que não banho meu corpo em águas salgadas e me deixo levar pelas marés e correntezas. Queria por mais uma vez ter meu corpo devolvido ainda com vida lá bem junto de onde a areia brinca na beira do mar. Porque o sal que hoje jaz em meu rosto é o que dá gosto às lágrimas que insistem em afogar meus olhos, mesmo eu repetindo para mim mesmo que está tudo bem. São dias sem o menor sentido, eu já disse. 

Onde foi que perdi minha lucidez? Como foi que se desfez o templo que havia erguido em mim? Ainda carrego muitas perguntas, eu sei. Porque não foram raras as vezes em que me perdi. E em todas essas vezes eu lembrava da última mulher que amei tentando me convencer de que era preciso deixar-se perder. Já naquela época eu caminhava em círculos desconexos, meus pés em espiral, cabeça nas nuvens, que só depois eu fui perceber que eram as mesmas nuvens que escorregavam ligeiras pelo céu como se quisessem esbarrar neste lugar onde me encontro até hoje. Ou o que restou em mim. 

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